sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Aquela bolsa

A bolsa sonhada por qualquer mulher do planeta, sentou-se antes, na poltrona ao lado. Não pôde deixar de olhá-la como outra olharia: com olhos de cobiça.

Começaram a conversar ela e a paciente. A anamnese mostrou o que a visão da bolsa já havia denunciado: hábitos todos de uma classe privilegiada . Clínicas frequentadas, procedimentos efetuados, cirurgias praticadas , tudo fazia parte de um universo para poucos.

Era uma mulher muito bonita, essa paciente. Pele perfeita, unhas perfeitas, cabelos sedosos,reluzindo tratamento. À medida em que falava, parecia tudo girar em torno dela, como se circular pelo mundo, fosse uma coisa muito facil e ensinada desde o berço .

Prosseguiram médica e paciente num conhecimento demorado de interpretaçoes de exames e história. Parecia uma consulta normal, em que ambas terminariam satisfeitas.

Agora, consulta acabada, paciente e bolsa tendo ultrapassado a porta de saída, a médica tem vontade de chorar e esquecer que é médica. Sabe que nesse caso, nada pode fazer.
Do glamour inicial da consulta, ao diagnóstico final dela , se passou um mundo de trevas que a doutora não esperava vivenciar, não para aquela mulher tão cheia de vida.

Não havia mais nada a ser cobiçado...

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O dom de curar

Talvez você esteja bem incerto
de que seja eu a pessoa adequada
a pedir ajuda.

Talvez toque a campainha da entrada
como quem não queira ser ouvido,
e na sala de espera encontre um sofá muito estreito
ou uma cadeira muito alta e desajeitada.

Quem sabe nas paredes haja mais quadros do que seus olhos desejam ver.
Talvez faltem tapetes.

As revistas podem não ser de seu agrado, e a água estar muito gelada.
Outros pacientes já podem estar também aguardando
e isso causar sua impaciência.

Quem sabe você tenha que conversar com um deles
e acabar ganhando um amigo
ou um inimigo.

Ao abrir a porta para sua consulta, posso não ser tão simpática como você esperava,
ou exagerar na simpatia.
Talvez eu não tenha o rosto que você imaginava , talvez idade a mais ou a menos.

Quem sabe não faça as perguntas necessárias para o diagnóstico
ou ainda,
você omita fatos importantes nas queixas e sintomas.

Mas pode ser que

você goste da sala de espera,
se tranquilize com o meu sorriso,
conte o que possa me ajudar
e eu veja tudo o que preciso,
para que o milagre se concretize
e você saia pela porta
melhor do que chegou...
Luiza ,entre outras queixas , me contou como havia sido seu dia anterior.
Acordara com vontade de mudanças no ar. Mas não as mudanças que sempre fazia , voltada para coisas : trocava móveis de lugar, pintava objetos. Não, queria uma mudança sua , de dentro para fora. Pensou no velho sonho de adquirir alguma peça cara , sem se culpar pelo resto de sua vida por havê-la adquirido . Parecia uma tarefa bem mais fácil e agradável do que realmente rever coisas mais profundas ; sim, poderia começar por aí. Depois passaria para coisas mais valorosas.
Saiu de casa , pensando na quantia que gastaria sem representar grande fortuna, e se dirigiu ao shopping mais próximo.Doce ilusão imaginar que seria tarefa fácil. Mais uma vez, seu mundinho pequeno e provinciano paralisou sua ação. Primeiramente porque a loja era cercada por enormes vigias, que intimidavam qualquer comprador, milionário ou não. Segundo, porque ela não tinha aquela postura (um tanto arrogante) , que as vendedoras dessas lojas esperam de suas clientes . Ficou ,portanto , horas olhando e babando diante das vitrines. Amava aquelas bolsas mas não conseguia imaginar -se andando com um objeto cujo valor daria para alimentar várias famílias talvez durante meses...
Embora tivesse o dinheiro, não entrou na loja.
E a sensação mais uma vez, foi a de que sua vida estava passando, suas vontades se mantendo só como vontades, e o mundo seguindo adiante para aqueles que não se detinham pensando demais por pequenas coisas...

sábado, 6 de março de 2010

1

Ana estava sentada à minha frente, abrindo para mim a sua vida, e eu me questionava se isso estava certo. Que direito eu tinha de saber sobre coisas tão profundas?
Sabia que outros muitos pacientes aguardavam na sala de espera ao lado, mas isso provavelmente era nada diante de seu estado de alma.
Deixei que falasse, sem interrupções. Estava precisando que alguem a ouvisse talvez até para se salvar mais um dia. Enquanto falava, ia estudando seus gestos, seu rosto.Era muito bonita,para a idade que tinha.Acabara de entrar no climatério,mas continuava com os traços da modelo que me confessou ter sido um dia.Os cabelos de um castanho claro, emolduravam um rosto arquitetonicamente equilibrado, de uma suavidade de causar alguma inveja sadia . As palavras já não eram tão bonitas naquele momento. Estava se separando do marido após vinte e cinco anos de casamento, e isso eu não invejava.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Às minhas filhas

Senti muito por todas essas manhãs de mesas não postas...

Minha avó arrumava a mesa do café sempre na noite anterior.
Dizia ela
que se alguém chegasse da rua durante a noite
sempre seria recebido com uma mesa repleta.
E seria mesmo : repleta de amor, carinho, dedicação, doçura
em forma de alimento.

E foi assim
que ao ter minha casa, também passei a deixar mesas postas.
Em vão tentei transmitir esse carinho para minhas filhas.
Só com pedidos severos acabam "cumprindo a tarefa".

Na realidade não descobriram ainda
que não se trata de uma obrigação, e sim,
de uma linguagem de amor.
Um meio de oferecer um cuidado ao outro
seja ele quem for...

Que bom se o mundo nos recebesse sempre
de mesas postas...

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

não sei

Não sei o que fazer
quando a água transborda no copo
o trem não para na estação
o sol não aparece no céu
você não volta para casa...

Terá o copo que transbordar para
mostrar sua dimensão?
O trem não parar
para certificar uma falha?
O sol não aparecer
para lembrar a existência de um Deus?

Você não voltar
só dóe em mim...

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

cordão umbilical

Minha filha, queria lhe dar um abraço
não um abraço que fosse só meu,
um abraço que fosse seu também.

Como já foi um dia
em que éramos só nós duas
ligadas por um cordão.

Não sei ao certo
o que foi passado
através desse cordão.
Talvez toda minha vida
talvez não.

Quem sabe, tudo aquilo que agora não consigo mais passar,
por um problema meu
por barreira sua.
Não sei ao certo.
Gostaria muito de saber...

Hoje quando a vi deitada
expressão meiga, serena,
profundamente adormecida
reconheci a menininha
que eu sempre amei e
que não sei em que pedaço da vida,
perdi.

Não precisa mais haver expressão tão serena,
nem tão meiga,
mas gostaria que o cordão
continuasse existindo.

Não como um vínculo mortal como foi um dia
mas como um vínculo de amor,
amizade,
querer bem...